#17 — Someone from your childhood
pra tu ter noção da gravidade da coisa, eu comecei a escrever essa carta no dia vinte de julho e só voltei a ela agora. Nesse dia, há mais de um mês, eu tinha escrito que às vezes ficava com muita raiva de ti. Hoje, tão pouco tempo depois, eu não sei mais se é bem assim. Do mesmo jeito que tenho acessos repentinos de amor, tenho de raiva, e eles vão embora tão rápido quanto chegam.
Mas enfim.
Eu sou uma das mais garotas mais velhas "dessa geração" aqui na rua, então eu brincava com os mais novos mesmo. Tu é uns três anos mais nova do que eu, e a gente andava de bicicleta e brincava de boneca até mais ou menos os meus dez ou onze anos. Eu gostava muito de brincar contigo, a gente ficava na rua até taaaaarde - quando tarde eram sete horas da noite - e o meu pai ficava no portão pra ver se a gente não ia cair da bicicleta e se estatelar no chão, como realmente fizemos algumas vezes.
Na verdade, na mais pura verdade, acho que tu não tinha nada que me fizesse pensar "essa menina é minha amiga e eu gosto muito dela". Tu era uma das poucas crianças com quem eu podia brincar na rua, então era isso. Só isso. Nunca nutri nenhum sentimento maior, e quando eu enjoei das bonecas e das outras brincadeiras, simplesmente nos afastamos.
Então, basicamente, eu nunca esperei que tivéssemos algum laço de amizade mais profunda ou coisa do tipo, porque nunca procuramos por isso. Sendo bem direta e seca, nos unimos apenas por uma conveniência, porque nós éramos úteis uma pra outra. Foi só isso.
Estranho, não é? É o tipo de crueldade que só as crianças têm, essa que não sei explicar direito. Não que eu tenha sido exatamente cruel contigo, mas acho cruel esse sentimento de conveniência e nada mais. Sei lá.
Hoje em dia, no entanto, eu tenho uns sentimentos complicados por ti. Ainda não te considero exatamente como uma amiga, no máximo como uma conhecida, mas sei lá... Eu te vejo como uma pessoa tão vazia, entende? Sei que isso pode ser exagerado e injusto, mas é assim que eu te vejo. E eu fico pensando se tu vai mudar um dia, mas na maior parte das vezes eu concluo que não.
E, sabe, eu não digo isso porque tu gosta de coisas extremamente duvidosas, mas sim porque as coisas que as pessoas te dizem parecem simplesmente passar direto por ti, sem deixar nenhuma coisa boa pra contar história. Quando teu irmão vinha aqui em casa, apesar de ser um pequeno destruidor dos ouvidos alheios e viver brigando contigo, ele ficava bem quietinho e prestava atenção quando eu explicava o dever de Química, assim como a Gabi. Quando tu vinha, ou quando eu ia na casa de vocês, tu achava que "aula de reforço" significava "pessoa que vem fazer o meu dever enquanto eu olho o orkut." Das milhões de vezes em que eu te disse pra não clicar em toda e qualquer propaganda idiota que saltar na tua frente na internet, quantas tu ouviu? Nenhuma, eu sempre tinha que voltar porque o computador tava todo fodido de vírus.
Tu ficava sentada do meu lado, lamentando a minha vida. Como deve ser triste uma vida em que a pessoa tem que estudar. Como deve ser triste uma vida em que uma pessoa consegue ler mais de uma frase em inglês. Como deve ser triste uma vida em que uma pessoa se diverte lendo. Como deve ser triste uma vida de uma pessoa que não tem orkut (porque eu nunca caí na besteira de te dizer que tenho um). Como deve ser triste uma vida em que a coisa mais importante do mundo não é que a fulana cortou o cabelo igual ao teu.
Tu ficou seriamente impressionada quando descobriu que eu tinha namorado, há séculos, porque por um acaso ele me ligou quando eu tava ajeitando o teu computador. Tu fez aquela cara de quem acha que é mentira, porque uma pessoa desse tipo certamente não teria um namorado.
Existem muitas pessoas iguais a ti nesses aspectos, mas não sei o que é, exatamente, que me faz pensar que tu não tem jeito. É uma pena.