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2011-09-06

Porque tem que começar em algum lugar

Veja você. 

Veja você que.


Começa assim, sempre. Veja você que, e alguma coisa que ele imaginava ser um comentário muito inteligente, mas eles sempre vêm com eu achava que essa cerveja ia ser pior. Ou veja você que eles realmente capricham nisso aqui. E no fim das contas eles são apenas mais algumas vozes entre aquelas tantas que estão falando de provas, de algoritmos, de aulas, de namorados, de cigarros, de bebidas, de ruas, de carros, de putas, da vida. De Kant. Eles falam de Kant. Isso definitivamente é o tipo de coisa que se destaca entre aquelas vozes todas se sobrepondo, ou talvez seja apenas porque ele quer que seja assim. Quer que seja assim enquanto carrega essas bandejas todas, quer apenas poder focar sua atenção num ponto só, numa conversa só. Dá pra aprender a fazer isso depois de tanto tempo andando entre as pessoas. Ele não se incomoda em ser invisível, existe toda uma arte em ser invisível, imagina como as coisas seriam tristes e ridículas se a todo momento o parassem no meio do caminho, bandeja na mão, pra perguntar como está indo a sua vida. Não dá.

Mas veja você que as pessoas estão ali, como sempre estiveram desde que ele se entende por garçom, e de repente ele se põe a perguntar por que diabos não tinha reparado nelas antes. Ele sabe, é claro. É só que é estranho, bom, talvez estranho não seja a palavra, mas é definitivamente curioso como as coisas acontecem. Como algumas pessoas simplesmente surgem assim, como se só existissem a partir do momento em que você se dá conta delas. Existe uma teoria pra isso, um nome, e você imagina que, veja só a ironia da vida, quem deve saber dessas coisas são justamente essas pessoas aí, tomando cerveja, reclamando do som ou da ausência dele, falando sobre a vida; deles e dos outros.

O nome desse ele que tanto se repete é Sérgio, sua ocupação, como se sabe, é a de garçom, o que lhe aflige as ideias agora, como se sabe, são os fregueses. São sempre eles. O então agora nomeado Sérgio, com todas as duas devidas consoantes e vogais, aproveita uma pausa para respirar do lado de fora do bar. O mês é junho, seu preferido, mas já é noite, quase madrugada, e ele prefere as tardinhas. Do lado de fora – se é que se pode chamar assim, com tanta importância, já que ele estava a apenas alguns passos da porta – o ar era claramente mais respirável, mas ele não podia negar que até que gostava daquele cheiro constante de cigarro e bebida e perfume e pessoas demais num lugar pequeno. Soava meio poético, uma poesia meio crua, é verdade, mas ainda assim. Era denso, e ele gostava de coisas densas.

Falando em densidade, lá do começo da rua, se não lhe enganavam os olhos, vinha Lenita. Vinha sozinha, com alguma coisa no braço, certamente um livro, talvez uma pasta a mais, a bolsa enorme a tiracolo, aquele rebolado característico, meio natural, meio sem querer. Sérgio fez as contas; faziam dois anos agora. Então lembrou que não estavam mais juntos havia coisa de um mês e se repreendeu por isso. Não é assim que se faz, ele pensou, não é bem como se desse pra esquecer. Antes que terminasse de pensar ela chegou, sorriu aquele sorriso que não chega aos olhos, o que era uma pena, porque ele realmente gostava de quando os olhos dela sorriam, e parou por alguns segundos na sua frente, talvez esperando que puxasse assunto. Não puxou, um momento constrangedor, ela entrou, ele acabou entrando depois. Não é assim que se faz, ele pensou de novo, enquanto ela se afastava para o fundo do bar, desajeitada, sem saber se quem tinha feito besteira havia sido ela ou ele.

Veja você que.

Começa mais alguém em alguma outra mesa e no mesmo momento aquele assovio de sempre corta o ar até seus ouvidos; preferia os assovios a “ei! EI!”, tinha até passado algum tempo catalogando mentalmente os diferentes tipos: os engraçadinhos, os despreocupados, os apressados, os que ainda precisavam de treino. Foi buscar os pedidos no balcão evitando olhar para o lado onde ela havia se sentado, evitando sequer pensar nisso, o que era impossível, claro. Não é assim que se faz, pensou uma terceira vez. Em tese, ele deveria estar feliz, mas não era exatamente esse o sentimento. O fim do namoro parecia mais um luto do que qualquer outra coisa, uma fase de adaptação, de desapego, ou seja, lá que nome se dê. Olhava pra Lenita e repensava se não estava mesmo fazendo uma escolha errada, se realmente não tinha mais jeito mesmo, se era tão horrível assim como ele pintava, se ela estaria falando dele agora, que ela tinha um nome tão bonito, um nome de personagem de conto e e e. Levou as bebidas, os tira-gostos, os pensamentos, tudo. Olhou o relógio, ainda não era nem meia-noite, suspirou. Ela estava com algumas amigas, e elas riam alto. Elas, não ela. É de propósito, ele pensou, estão rindo de mim; e ela ainda está naquela fase de olhar pro lado e pensar se deveria rir ou não, se deveria se sentir bem ou não, porque afinal é um luto, como ele já havia percebido.

Dez para a meia-noite e contando. 

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