Acordou assustado, sem saber muito bem onde estava. Havia muito tempo
que seus sonhos eram apenas lembranças de coisas que realmente
aconteceram; um mosaico de memórias se repetindo incansavelmente, sem
nenhum elemento novo. Mas aquele tinha sido diferente. Naquele, como ele
lembrava claramente agora, a mala era desfeita, as coisas aconteciam de
outro jeito. Tentou se agarrar ao que restava do sonho como um afogado -
sabia que esqueceria logo. Ficaria apenas aquilo que fica de todos os
sonhos; uma lembrança opaca do que foi sentido e quase nada do que foi
visto.
Aos poucos as coisas foram voltando ao lugar. Estava no quarto, na cama, era madrugada, a esposa dormia ao leu ado. Ficava mais difícil lembrar do sonho, mas sabia disso com certeza: a mala era desfeita, ele voltava para a cama, mas era outra pessoa que estava ao seu lado. Era uma lembrança, afinal, como todos os outros sonhos, mas adulterada. Pois ele tinha, sim, feito uma mala, se levantado da cama e saído em uma madrugada como aquela, muitos anos atrás. Procurava palavras que descrevessem mais cruamente seu ato; fuga e abandono eram sempre as primeiras da lista. Era ridículo, pensava, enquanto a tentativa de reprimir o choro o fazia se retesar tanto que poderia implodir, era ridículo lamentar agora pela outra época da sua vida, como a chamava. Ele não era feliz. Não era. Não era? Às vezes achava que sim, às vezes não tinha certeza, mas isso também não era ruim porque se dava conta de que na verdade não tinha importância. Mas em momentos como aquele, sentia uma vergonha terrível de si mesmo por sentir tanta falta daquela outra época, aquela da qual não podia falar.
Pois naquela época, se tivessem lhe contado que iria se casar um dia, não teria acreditado. Riria, até. Mas estava ali, ao seu lado, a segunda esposa, um pouco mais nova que ele, certamente mais bonita do que merecia. Era estranho pensar que ela o conhecera assim, do jeito que era agora, e não desconfiava do que havia existido antes. A outra, a primeira esposa, o tinha conhecido bem na transição entre o que ele era e o que tinha se tornado, se é que as pessoas algum dia param de ser tornar algo. Lembrava de quando tinha voltado pra casa pela primeira vez desde a sua fuga, do enterro dela e de como se percebia deslocado quando inserido de novo na sua antiga vida. Já tinha se tornado aquele outro algo, mais duro até consigo mesmo.
Já era tarde demais agora - nunca conseguiria se lembrar de todos os detalhes do sonho. Mas a vida acordado é assim também, ele sabia, uma sucessão de lembranças muito sentidas e pouco vistas, não raro até mesmo distorcidas. Não fosse assim, colocando de lado, propositalmente, os chutes, o falatório sobre as circunstâncias do seu nascimento, o cheiro de doença da bisavó, como lembraria da infância como algo tão bonito? Mas sabia que aquela outra época da sua vida ainda não estava tão distorcida assim; conseguia ainda enxergar aquele aspecto amargo, talvez agridoce, não conseguia decidir, que permeara toda a sua juventude. Conseguia sentir falta dela, com tudo que havia de bom e ruim. Fechasse os olhos, sentiria de novo o cheiro de tudo mais uma vez; sexo e sangue e suor e até mesmo neve e o cheiro dele, não o perfume, mas o da pele, o que não muda e que fica em tudo que fique na gente por tempo o suficiente; talvez tenha ficado nele também. Sim, queria que ainda pudesse encontrar aquele cheiro em si, mas havia apenas nele, toda vez que se aproximava, agora apenas um amigo, nada mais que um oásis na multidão de cheiros esterilizados que havia na sua vida agora.
Não era homem de "e se", não gostava de pensar no que poderia ter sido, mas não podia evitar; e se tivesse desfeito a mala, voltado pra cama, ficado ao lado dele? Teria ido embora em um outro dia, teriam brigado alguns anos depois? Talvez ainda estivesse ao seu lado, ali, agora mesmo, em vez daquela pessoa que de repente lhe parecia uma estranha. Mas não tinha como saber, era por isso que não gostava de "e se", pra início de conversa, e essa era a pior parte.
Não, se dava conta de que a pior parte seria outra. Seria vê-lo no dia que amanhecia agora e sentir aquele calor estranho, abafado por camadas e mais camadas de dissimulação, como se aquela outra época, aquela juventude interrompida tantos tempo atrás voltasse de repente e fosse a primeira vez que se viam. A primeira não, porque apesar de tudo ele não era um romântico e não acreditava nessas coisas, mas os primeiros meses, quando ainda se conheciam aos poucos; e depois de tanto tempo e de já terem se conhecido tanto e de verem um no outro aquilo que são em vez do que se tornaram, era de certa forma bonito que ainda fosse possível se sentir assim. Talvez tivesse se tornado um romântico, afinal.
Talvez devesse escrever uma carta.
Aos poucos as coisas foram voltando ao lugar. Estava no quarto, na cama, era madrugada, a esposa dormia ao leu ado. Ficava mais difícil lembrar do sonho, mas sabia disso com certeza: a mala era desfeita, ele voltava para a cama, mas era outra pessoa que estava ao seu lado. Era uma lembrança, afinal, como todos os outros sonhos, mas adulterada. Pois ele tinha, sim, feito uma mala, se levantado da cama e saído em uma madrugada como aquela, muitos anos atrás. Procurava palavras que descrevessem mais cruamente seu ato; fuga e abandono eram sempre as primeiras da lista. Era ridículo, pensava, enquanto a tentativa de reprimir o choro o fazia se retesar tanto que poderia implodir, era ridículo lamentar agora pela outra época da sua vida, como a chamava. Ele não era feliz. Não era. Não era? Às vezes achava que sim, às vezes não tinha certeza, mas isso também não era ruim porque se dava conta de que na verdade não tinha importância. Mas em momentos como aquele, sentia uma vergonha terrível de si mesmo por sentir tanta falta daquela outra época, aquela da qual não podia falar.
Pois naquela época, se tivessem lhe contado que iria se casar um dia, não teria acreditado. Riria, até. Mas estava ali, ao seu lado, a segunda esposa, um pouco mais nova que ele, certamente mais bonita do que merecia. Era estranho pensar que ela o conhecera assim, do jeito que era agora, e não desconfiava do que havia existido antes. A outra, a primeira esposa, o tinha conhecido bem na transição entre o que ele era e o que tinha se tornado, se é que as pessoas algum dia param de ser tornar algo. Lembrava de quando tinha voltado pra casa pela primeira vez desde a sua fuga, do enterro dela e de como se percebia deslocado quando inserido de novo na sua antiga vida. Já tinha se tornado aquele outro algo, mais duro até consigo mesmo.
Já era tarde demais agora - nunca conseguiria se lembrar de todos os detalhes do sonho. Mas a vida acordado é assim também, ele sabia, uma sucessão de lembranças muito sentidas e pouco vistas, não raro até mesmo distorcidas. Não fosse assim, colocando de lado, propositalmente, os chutes, o falatório sobre as circunstâncias do seu nascimento, o cheiro de doença da bisavó, como lembraria da infância como algo tão bonito? Mas sabia que aquela outra época da sua vida ainda não estava tão distorcida assim; conseguia ainda enxergar aquele aspecto amargo, talvez agridoce, não conseguia decidir, que permeara toda a sua juventude. Conseguia sentir falta dela, com tudo que havia de bom e ruim. Fechasse os olhos, sentiria de novo o cheiro de tudo mais uma vez; sexo e sangue e suor e até mesmo neve e o cheiro dele, não o perfume, mas o da pele, o que não muda e que fica em tudo que fique na gente por tempo o suficiente; talvez tenha ficado nele também. Sim, queria que ainda pudesse encontrar aquele cheiro em si, mas havia apenas nele, toda vez que se aproximava, agora apenas um amigo, nada mais que um oásis na multidão de cheiros esterilizados que havia na sua vida agora.
Não era homem de "e se", não gostava de pensar no que poderia ter sido, mas não podia evitar; e se tivesse desfeito a mala, voltado pra cama, ficado ao lado dele? Teria ido embora em um outro dia, teriam brigado alguns anos depois? Talvez ainda estivesse ao seu lado, ali, agora mesmo, em vez daquela pessoa que de repente lhe parecia uma estranha. Mas não tinha como saber, era por isso que não gostava de "e se", pra início de conversa, e essa era a pior parte.
Não, se dava conta de que a pior parte seria outra. Seria vê-lo no dia que amanhecia agora e sentir aquele calor estranho, abafado por camadas e mais camadas de dissimulação, como se aquela outra época, aquela juventude interrompida tantos tempo atrás voltasse de repente e fosse a primeira vez que se viam. A primeira não, porque apesar de tudo ele não era um romântico e não acreditava nessas coisas, mas os primeiros meses, quando ainda se conheciam aos poucos; e depois de tanto tempo e de já terem se conhecido tanto e de verem um no outro aquilo que são em vez do que se tornaram, era de certa forma bonito que ainda fosse possível se sentir assim. Talvez tivesse se tornado um romântico, afinal.
Talvez devesse escrever uma carta.